segunda-feira, 22 de março de 2010

As feridas de Belo Monte, por Ricardo Rettmann

Ricardo Rettmann*

Rio Xingu, onde será construída Belo Monte. (Foto: IPAM)No dia 3 de
fevereiro de 2010 o Brasil atingiu, pelo terceiro dia consecutivo, o
recorde de consumo de energia. A demanda por energia ultrapassou, pela
primeira vez na história, os 70 mil megawatts (MW), chegando a 70.400
MW. O ano de 2010 mal começava e o país já batia recordes,
impulsionado pela retomada da atividade industrial e pelas altas
temperaturas Brasil afora, conforme relatou o Operador Nacional do
Sistema Elétrico (ONS).

Gerar energia para manter estável a crescente produção brasileira a um
ritmo planejado de 5% a 6% por ano é o pano de fundo que justificaria
a construção de Belo Monte. Sem essa obra, alega o governo federal, o
país precisaria acionar as caras e poluidoras usinas termelétricas.

O projeto de construção de Belo Monte é antigo e remete aos primeiros
estudos de viabilidade que ocorreram na década de 1970, ainda durante
o período militar. Os enormes desafios técnicos e, principalmente,
socioambientais de uma obra desta magnitude na região foram
suficientes para que os governos anteriores desistissem dessa
empreitada.

O governo atual, através do seu Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC) resgatou este projeto. E martelou tanto a ideia de concretizar
esta obra faraônica, que está conseguindo tirá-la do papel a ponto de
fazer dela um dos principais palanques da “mãe do PAC”, a ministra e
pré-candidata a presidente Dilma Rousseff.

Realmente, os números da obra de Belo Monte assustam até mesmo os
especialistas. A quantidade de terra e pedra que será retirada na
escavação do canal - cerca de 210 milhões de m³ - é um pouco menor da
que foi removida na construção do Canal do Panamá (e ainda não está
previsto onde irão colocar tanta terra). Pelo leito do rio Xingu passa
uma vazão de 23.000 m³/s de água no período de cheia, volume
correspondente a quatro vezes a vazão, também nos períodos de cheia,
das Cataratas do Iguaçu.

O preço da obra acompanha essa magnitude: o governo alega que a obra
toda custará cerca de R$ 16 bilhões, enquanto os dois grupos prováveis
concorrentes do leilão a ser realizado em abril, afirmam que custará
pelo menos R$ 30 bilhões. Os cerca de 10% a 20% normais para custear o
gerenciamento do recurso, portanto, podem deixar os vencedores do
leilão sorrindo de orelha a orelha, ainda mais sabendo que, pela
primeira vez na história, o BNDES financiará cerca de 80% da obra,
contra os 30% habituais.

O que mais incomoda os críticos da obra foi o processo de aprovação. A
toque de caixa e enfiando goela abaixo da população, o governo
preparou o projeto da obra, derrubou as liminares contrárias emitidas
pelo Ministério Público, fez rápidas audiências públicas, calou os
índios, derrubou dois diretores do Ibama e aprovou a obra, tudo isso
casualmente em ano eleitoral.

Cercada de perguntas sem respostas, a obra causou uma situação inédita
na região de Altamira, principal cidade da região onde será construída
a hidrelétrica. Visto como um projeto do PT, os movimentos sociais
regionais, a princípio radicalmente contrários a Belo Monte, demoraram
a se posicionar contra o empreendimento, já que são parte da fundação
do partido e sustentam a legenda regionalmente. Agora, muitos já se
desfiliaram da legenda e, mesmo aqueles que continuam apoiando o
partido, prometem radicais manifestações contrárias à obra.

A mesma reação terá o movimento indígena, que se vê como grande
prejudicado no processo. Além de não terem sido formalmente
consultados no processo de licenciamento, veem o rio como sagrado e
estão bastante preocupados com os impactos ecológicos que suas
comunidades sofrerão com a drástica diminuição da vazão da água em
trecho de cerca de 100 km. Prometem fazer de tudo para brecar a
construção. Até o dia 23 de fevereiro, centenas deles ocuparam a sede
da Funai em Altamira, que fica dentro do Campus da Universidade
Federal do Pará. Agora, prometem um enorme acampamento no local que
será a base para a construção da usina, reforçados pelos guerreiros do
Parque Indígena do Xingu. O palco para o conflito está armado.

O poder público e a sociedade em geral dos municípios da região estão
também bastante preocupados. Apesar das 40 condicionantes
(http://www.ibama.gov.br/2010/02/sai-licenca-previa-de-belo-monte-com-40-condicionantes/)
aprovadas de última hora pelo Ibama, que teoricamente irão encarecer a
obra em R$ 1,5 bilhão, todos sabem que em nenhuma hidrelétrica na
história do país as condicionantes socioambientais foram cumpridas à
risca e têm o medo real de que, desta vez, não será diferente.

As preocupações são realmente dignas de desespero. O município de
Altamira, que tem população oficial de 96.000 pessoas contando as que
vivem em áreas rurais, sabe que terá boa parte de sua área urbana
alagada pelas obras. Mas esse número ainda não está claro, girando
entre 30% e 70% da cidade. Com isso, não se sabe quantas pessoas
deverão ser removidas e, muito menos, para onde essas pessoas irão,
apesar de o governo repetir sorrindo que todos os prejudicados serão
remanejados.

A competente e simpática Secretária Municipal de Meio Ambiente e
Turismo de Altamira, Zelma Luzia da Silva Costa, está, com razão,
bastante preocupada. Vendo os pedidos de licenciamento ambiental de
pequenas obras, que são de responsabilidade desta Secretaria,
aumentarem a um ritmo nunca antes visto, ela recebe constantemente
ligações anônimas de pressão pela agilidade na aprovação, tentativas
de suborno e até ameaças físicas. Por isso está reforçando o sistema
de segurança do prédio onde se encontra Secretaria.

Segundo ela própria, este quadro é agravado pela expectativa de
chegada, somente em Altamira, de 100.000 novas pessoas, normalmente
das regiões pobres do país, atraídas pela possibilidade de riqueza
fácil. Preocupa, pois, que apesar das condicionantes não existe um
plano claro para itens básicos da qualidade de vida na cidade e na
região, como abastecimento de comida, que depende muito da importação
de alimentos de outras regiões do país, aumento de leito nos
hospitais, vagas nas escolas, segurança, transporte, entre outros. Não
há previsão, também, de ordenamento territorial e regularização
fundiária para conter os desmatamentos decorrentes da chegada destas
novas pessoas, que estimularão a grilagem de terras e a especulação
imobiliária, agravada pelo asfaltamento da Transamazônica, que
acompanhará Belo Monte.

*Ricardo Rettmann é Gestor Ambiental e trabalha como assistente de
pesquisa no Programa de Mudanças Climáticas do IPAM.

Fonte: http://www.ipam.org.br/revista/-p-As-feridas-de-Belo-Monte-p-/186

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