quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Conjuntura da Política Indigenista: O Presidente Lula e os “entraves” de seus dois mandatos!

Os anseios dos povos indígenas e suas expectativas não foram atendidos no governo Lula. As demarcações de terras, dever do Estado, não se tornaram prioridade e muitos dos procedimentos demarcatórios se encontram paralisados. Poucas foram as terras regularizadas nos dois mandatos do presidente Lula: ele homologou apenas 88 terras, sendo que muitas delas tiveram os procedimentos iniciados em governos anteriores. O comentário é de Roberto Antonio Liebgott, Vice-Presidente do Conselho Indigenista Missionário – Cimi em artigo no portal do Cimi, 13-12-2010.
Eis o artigo.
Ao findar o segundo mandato do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva não se pode deixar de avaliá-lo quanto a sua política para os povos indígenas, bem como, em certa medida, compará-lo com outros governos que também desenvolveram ações indigenistas. Esta tentativa de análise e avaliação tem como objetivo apontar avanços e retrocessos da política realizada, ao longo de oito anos.

É bom salientar, até para estabelecer um parâmetro entre os diferentes governantes, que alguns dos que presidiram o Brasil nas últimas décadas foram concebidos no seio da ditadura militar, outros forjados no neoliberalismo ou, ainda, na social democracia. Nos últimos oito anos vivemos tempos de governo Lula que teve sua história de militância construída no movimento sindical, onde se refletia, na época, os ideais de esquerda.

Iniciamos a análise com uma breve retrospectiva, a partir de João Batista Figueiredo, general do Exército, que comandou o Brasil (1979 a 1985) numa época em que se discutia tanto nas ruas, quanto no parlamento, a transição do autoritarismo militar para o que acabou sendo denominado de uma “Nova República”. Período também em que se gestou a idéia de se convocar uma Assembléia Nacional Constituinte, com a finalidade de elaborar e aprovar uma nova Constituição. No governo do General Figueiredo se instalou no Brasil uma grave crise econômica. Foi o fim do “milagre brasileiro”, um tempo marcado pela política desenvolvimentista do regime militar. Naquele período também ocorreu a reabertura política e o fim do bipartidarismo. A partir de então foram criados vários partidos políticos, os que estavam na clandestinidade puderam expressar seus ideais e outros foram reestruturados. Neste contexto nasceu o Partido dos Trabalhadores (PT).

No tocante à questão indígena, o governo de Figueiredo teve consequências dramáticas: houve a propagação de epidemias e endemias que atingiram dezenas de povos na Amazônia, sendo que alguns deles sofreram risco de extinção, a exemplo dos Deni. A política de integração nacional desencadeou um processo intenso de invasões nas terras indígenas. Estradas e hidrelétricas foram projetadas e construídas rasgando e alagando as florestas da Amazônia. O incentivo à colonização sulista no Pará, Rondônia e Mato Grosso acelerou o processo de desmatamento. A concessão e instalação de grandes empresas de mineração ampliaram significativamente a devastação e a contaminação de lagos e rios. Em Roraima a terra Yanomami foi sendo paulatinamente invadida por garimpeiros. A perspectiva do Estado era a de “integrar os índios à comunhão nacional” e, para aqueles que resistissem ao processo assimilacionista, se projetava o extermínio através da expansão colonialista.

Já o presidente José Sarney governou o país por cinco anos (1985-1990), em função do falecimento de Tancredo Neves, eleito de forma indireta através de um Colégio Eleitoral (composto por Deputados Federais, Senadores e seis representantes de cada Assembléia Legislativa) em disputa com Paulo Maluf, no dia 15 de janeiro de 1985. Entre suas atribuições estava a de conduzir o processo de redemocratização, a de convocar a Assembléia Nacional Constituinte e promover eleições diretas para Presidência da República. Sob comando de Sarney o Brasil foi submetido ao colapso da economia, gerado em especial pelos altos índices de inflação que chegaram a 85% ao mês. Muitas áreas indígenas, em especial na Amazônia, foram tomadas por invasores (pescadores, madeireiros, garimpeiros, mineradoras). A Funai tornou-se reduto de servidores anti-indígenas e as políticas executadas tinham por finalidade a liberação das terras para a exploração mineral, madeireira e também para a implantação de núcleos de colonização. No período governado por Sarney a presença garimpeira na área Yanomami foi avassaladora: mais de 30 mil garimpeiros ocuparam a terra indígena com a conivência do Governo Federal e com apoio da Funai. Estima-se que mais de 2000 Yanomami morreram em decorrência de doenças provocadas pela invasão de suas terras.

Em 1988, com a promulgação da nova Constituição Federal, importantes avanços foram conquistados no que tange aos direitos indígenas, especialmente há que se destacar que a nova Carta Magna rompe com a perspectiva integracionista, garante o direito à diferença e determina que as terras sejam todas demarcadas (Art. 231, 232, 210, 215).

Depois de um mandato de cinco anos do presidente Sarney, a população brasileira elegeu Fernando Collor de Mello (1990 a 1992), em disputa com o candidato Lula, do Partido dos Trabalhadores. Ao assumir, Collor interferiu na economia do país, através de medidas extremas: o congelamento e o bloqueio das cadernetas de poupança da população foram as que mais interferiram na vida dos brasileiros.

Na política indigenista, ele criou decretos estabelecendo competências aos Ministérios da Justiça, da Saúde, da Educação e da Agricultura para que estes promovessem ações e serviços aos povos indígenas. Pressionado pela realização da ECO92 no Brasil, Collor determinou que a área Yanomami fosse demarcada. Outras terras também passaram por estudos antropológicos e posteriormente foram consideradas como sendo de ocupação tradicional indígena, de modo especial na Amazônia. Em pouco mais de dois anos de seu conturbado governo, interrompido por um processo de impeachment por corrupção, Collor homologou 108 terras indígenas.

Itamar Franco, vice de Collor, assumiu a Presidência da República e governou o país entre os anos de 1992 a 1994. Naquele período foi convocada a Segunda Conferência Nacional de Saúde Indígena, que estabeleceu as diretrizes e parâmetros para uma nova política de saúde. O governo de Itamar Franco homologou, em dois anos, 20 terras indígenas.

O segundo presidente eleito pelo voto popular foi Fernando Henrique Cardoso, em disputa com Lula. FHC consolidou a candidatura e se elegeu por dois mandatos (1994 a 2002), em função do Plano Real, criado para combater a inflação. Na era FHC a questão indígena passou a ter maior visibilidade, não em função dos direitos conquistados ou pela necessidade de estruturar políticas adequadas para eles, e sim por conta dos interesses econômicos que insidiam sobre as terras indígenas.

No governo de FHC foi revogado o Decreto 22/91 que regulamentava o procedimento de demarcação de terras, criado por Collor. Em seu lugar editou-se o Decreto 1775/96, que teve por objetivo possibilitar a ingerência direta dos opositores aos direitos indígenas nas fases iniciais dos procedimentos de demarcação, através do “direito ao contraditório”. Com essa estratégia, dezenas de demarcações de terras acabaram questionadas, mesmo depois de terem sido concluídos os seus estudos de identificação, delimitação e comprovação da ocupação tradicional indígena. FHC introduziu, no âmbito das políticas públicas, a terceirização dos serviços, transformando a assistência de saúde e educação num espaço de loteamentos políticos a parlamentares, partidos, ONGs e prefeituras. Nos oito anos de governo, FHC homologou 147 terras indígenas.

O presidente Lula, depois de quatro disputas presidenciais, foi eleito em 2002 e reeleito em 2006. Lula consolidou sua candidatura como opositor das políticas neoliberais, do imperialismo norte-americano e com a promessa de que moralizaria a administração pública, afetada por constantes denúncias de corrupção. A candidatura de Lula expressava o anseio popular por mudanças e sobre a qual recaiam a confiança e as esperanças dos pobres, que acreditavam ser possível um governo desenvolver políticas de geração de empregos, assistência digna, educação de qualidade, segurança, reforma agrária, redistribuição de renda.

Os povos indígenas confiaram que haveria um governo comprometido com suas lutas e reivindicações e, por conseguinte, as suas terras seriam demarcadas e que se estruturariam políticas tendo em vista assistência diferenciada e digna, conforme determinações constitucionais.

Mas suas expectativas e anseios não foram atendidos. As demarcações de terras, dever do Estado, não se tornaram prioridade e muitos dos procedimentos demarcatórios se encontram paralisados. Poucas foram as terras regularizadas nos dois mandatos do presidente Lula: ele homologou apenas 88 terras, sendo que muitas delas tiveram os procedimentos iniciados em governos anteriores.

A falta de uma atuação mais decisiva por parte do governo Lula no tocante às demarcações é demonstrada nos seguintes dados: das 988 terras, 323 ainda encontram-se sem nenhuma providência; 146 estão em estudo, mas ainda a identificar. Quanto às terras em que os procedimentos de demarcação já tiveram início, a situação atual é a que se segue: 20 estão identificadas; 60 estão declaradas; 35 já foram homologadas e 366 encontram-se registradas e, desse modo, com sua demarcação concluída. Existem ainda 36 áreas que foram reservadas aos povos indígenas.

Os dados evidenciam que os procedimentos de demarcações de terras estão sendo relegados ao esquecimento ou protelados indefinidamente, ao mesmo tempo em que tem se intensificado o processo de criminalização de lideranças indígenas que lutam pela demarcação das terras. Exemplo evidente disso são as perseguições desencadeadas aos líderes do Povo Tupinambá na Bahia.

Para agravar a situação, este governo inaugurou expedientes ilegítimos, tais como a redução de áreas já demarcadas, e a suspensão de portarias que previam a continuidade dos procedimentos demarcatórios. Para exemplificar, podem ser lembradas as suspensões das portarias declaratórias das terras indígenas Guarani Mbyá de Morro Alto, Piraí, Tarumã e Pindoty, nos municípios de São Francisco do Sul e Araquari, em Santa Catarina.

Em síntese, os dados apresentados no quadro abaixo confirmam que no governo Lula a questão indígena recebeu menor atenção do que em todos os governos civis que o antecederam.

PAC “goela abaixo”

Ao fazer esta breve retrospectiva da política indigenista, nos oito anos de governo do presidente Lula, se constatou, de um lado, o interesse em manter o bom discurso, alinhado com os anseios e expectativas dos povos indígenas e de outro, as práticas cotidianas, que diferentemente da retórica de que se garantiriam os seus direitos, se direcionaram para estimular a ambição dos segmentos que historicamente se opõem a eles. Para estes o governo criou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que, na essência, serviu e serve para financiar e apoiar empresas da agroindústria, do agronegócio, os banqueiros, as empreiteiras da construção civil, os conglomerados que investem nas grandes barragens, em mineração, na exploração madeireira e os grandes latifundiários que se dedicam ao monocultivo ou a criação bovina.

Na concepção desenvolvimentista do atual governo, focada apenas em aspectos econômicos, estes segmentos são “produtivos” e viáveis. Os demais – os trabalhadores, os empobrecidos, os povos indígenas, os pequenos produtores – foram rotulados como improdutivos e, desse modo, tratados como sujeitos sem relevância para a economia e para o país. A sensação que se tem é a de que aqueles que governam o Brasil analisam e concebem que os pobres e as “minorias étnicas” devem receber, do poder público, a sua “generosidade” ou “caridade” e não políticas estruturantes. E, além disso, o presidente Lula, seguindo o exemplo dos governos militares, considerou os povos indígenas obstáculos ou entraves ao desenvolvimento e seus direitos constitucionais penduricalhos.

Explode a violência contra os povos indígenas

Nos últimos anos pode-se dizer que foi deflagrada uma intensa perseguição e criminalização de lideranças indígenas que lutam pela terra. Isso ocorreu especialmente na Bahia, Pernambuco, Maranhão, Mato Grosso do Sul. Some-se a isso o alastramento de violências contra comunidades e povos em diferentes regiões brasileiras. Além de terem seus territórios invadidos, de padecerem com a falta de assistência em saúde, estes povos sofreram com o assassinato de 437 pessoas.

A omissão do governo Lula em relação ao intenso processo de violências enfrentadas pelos Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul, e que se pode caracterizar como genocídio, é talvez o elemento mais significativo da falta de interesse pelos povos indígenas. Os abusos contra este povo são denunciados por organizações de defesa dos direitos humanos e indígenas no Brasil e no exterior. Entretanto, mesmo assinando um Termo de Ajustamento de Conduta, no qual a Funai se comprometia em realizar os estudos de identificação e delimitação de áreas de ocupação indígena naquele estado da federação, o órgão indigenista se omitiu. A demarcação das terras poderia ter evitado a morte de centenas de pessoas do povo Guarani Kaiowá. Além disso, uma ação mais eficaz de proteção das comunidades e de punição daqueles que pra ticam as violências poderia ter abrandado, em parte, o sofrimento que lhes é imposto há décadas.

O estado de Mato Grosso do Sul é recordista em violências contra os povos indígenas, e ali as comunidades indígenas são obrigadas a viver em beira de estradas, são expulsas de seus acampamentos e têm seus pertences queimados. Dois professores indígenas foram sequestrados e mortos.

Vale ressaltar que em diferentes estados do Brasil também foram praticados assassinatos de indígenas, e nem todos esses números são divulgados. Os dados registrados são os seguintes:

Orçamento indigenista contingenciado

Os dados da execução do orçamento indigenista, ao longo dos últimos oito anos, também demonstram o descaso com os 241 povos indígenas do país. Mesmo quando há recursos aprovados, estes acabam não sendo executados conforme o previsto. Chegamos ao final de 2010 com apenas 61% do orçamento indigenista liquidado. Programas e ações fundamentais para a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas tiveram uma pífia execução de seus recursos. Vejamos:

Estes números indicam que os recursos previstos no Orçamento Geral da União para assistência em saúde, demarcação de terras e recuperação de áreas degradadas não foram aproveitados como deveriam, e tal procedimento é injustificável diante da grave situação vivida pelas comunidades e povos indígenas. Não parece ser, portanto, por falta de recursos que o governo Lula deixou de demarcar terras indígenas e ocupa o pior lugar em termos de desempenho neste quesito, se comparado aos seus antecessores.

Reestruturação x Grandes Empreendimentos

A Funai, durante todo o mandato do governo Lula, manteve-se em estado de letargia e subserviência frente às pressões desencadeadas contra as demarcações de terras. Ao final de 2009, como que num passe de mágica, a equipe do governo decidiu reestruturar o órgão indigenista, através de decreto nº. 7056, expedido no dia 29 de dezembro daquele ano. A referida reestruturação não agradou a muitos dos povos indígenas por apresentar mudanças na estrutura do órgão sem que eles fossem consultados, desrespeitando a Convenção 169 da OIT, ratificada e homologada pelo governo brasileiro. Esse fato gerou um ambiente de extrema desconfiança quanto às reais motivações que levaram o governo a impor as pretendidas mudanças.

É importante ressaltar que o processo de reestruturação da Funai vem se dando num ambiente de intensas disputas territoriais, de forte oposição aos direitos constitucionais dos povos indígenas, e num cenário de disputa dos empreendimentos econômicos vinculados ao PAC, e neste programa pelo menos 450 obras afetam terras indígenas.

Depois de apresentada a proposta de reestruturação do órgão indigenista apenas as coordenações que tratam das questões administrativas, ambientais e aquelas destinadas a estudos sobre os empreendimentos que incidem sobre terras indígenas tiveram planejamentos e ações efetivamente desenvolvidas. Desse modo, pode-se dizer que o órgão indigenista foi colocado, de certa forma, a serviço do PAC, e sua função parece ser, neste caso, a de convencer as comunidades indígenas de que devem dar suas anuências aos projetos a serem executados.

Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI)

No que se refere às demandas para além das questões fundiárias, foram sendo promovidas inúmeras ações nas áreas ambientais, de saúde, de meio ambiente, agricultura, educação. No entanto, muitas delas foram realizadas de maneira pulverizada e desarticulada entre si, sem convergir para a questão central, que é a falta de uma política com efetiva participação indígena.

Na expectativa de solucionar este problema, os povos indígenas apresentaram proposta de criação do Conselho Nacional de Política Indigenista. Ao invés disso, o Governo Federal constituiu a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), em 2007. Não tendo o status de Conselho, a CNPI não tem poder de deliberação. Os seus membros apresentam as demandas (temas e questões) que afetam os povos indígenas e que devem ser debatidas, estudadas e refletidas para posterior encaminhamento no âmbito do governo e da política indigenista.

Em quase três anos de existência, a CNPI acabou se tornando um ente de articulação de algumas lideranças, mas parece ser desconsiderada no que se refere às ações e políticas a serem implementadas a partir de suas recomendações, já que estas não são assumidas pelo governo. Exemplo disso foi a edição do decreto de reestruturação do órgão indigenista, sem que os integrantes da Comissão tivessem conhecimento de seu conteúdo e muito menos que tenham sido ouvidos a este respeito. Em síntese, as mudanças que deveriam ser antecedidas pelo debate e anuência dos povos indígenas acabaram sendo abruptamente anunciadas desrespeitando, inclusive, os fóruns qualificados para o debate, como é o caso da CNPI.

Só em 2008, após muita pressão dos movimentos indígena e indigenista, o Governo Federal apresentou o Projeto de Lei nº. 3571 que prevê a criação do Conselho Nacional de Política Indigenista. A sua tramitação segue a passos lentos no Congresso Nacional, pois não lhe foi dada a importância devida.

Também merecem uma avaliação as políticas de saúde e educação. Na assistência à saúde indígena existiram graves e profundas contradições, pois foi transformada em espaço de negociações com partidos políticos, de modo especial com o PMDB. A política esteve estruturada durante mais de uma década no modelo de assistência terceirizada. Os convênios eram estabelecidos entre a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) com ONGs ou prefeituras. Esta relação perdurou até o ano de 2008 quando, por pressão do movimento indígena, em função da intervenção do Ministério Público do Trabalho e de decisão da Justiça, o modelo de assistência (conforme está estabelecido na lei Arouca e pelas deliberações das Conferências de Saúde Indígena) passou a ser tratado no âmbito do Ministério da Saúde. Vale destacar que durante um longo período a Funasa foi alvo de denúncias por malversação de recursos públicos e por corrupção. Auditorias realizadas pelo Tribunal de Contas da União constataram graves distorções sobre o uso dos bens e recursos e na prestação dos serviços.

Tardiamente e já quase no final de seu governo, o presidente Lula determinou a criação da Secretaria Especial de Atenção a Saúde Indígena. A proposta atende às reivindicações dos povos indígenas, e esta Secretaria será o órgão gestor do Subsistema de Atenção a Saúde Indígena, sob a responsabilidade do Ministério da Saúde. O novo modelo terá como referência os Distritos Sanitários (DSEIs) enquanto unidades gestoras. A Secretaria foi criada formalmente, mas ainda não foi estruturada.

A política de educação escolar indígena tem sido igualmente contraditória. A responsabilidade é do Ministério da Educação (MEC), que repassa os recursos e as atribuições da educação escolar aos Estados que, por sua vez, podem transferi-las aos municípios. Com o objetivo de buscar uma solução para as distorções e contradições existentes na execução da política de educação foram apresentadas propostas dos movimentos de professores indígenas, de entidades de apoio e pesquisadores apontando para uma perspectiva da federalização da política. No entanto, os técnicos do Ministério da Educação optaram por um caminho diferente. Instituíram através do Decreto nº. 6861, de 27 de maio de 2009, os chamados Territórios Etnoeducacionais, antes mesmo da realização de todas as conferências regionais previstas para avaliar e propor alternativas para a educação escolar indígena. Esse processo de reflexão culminou na Conferência Nacional de Educação que, ao invés de discutir as propostas vindas das diferentes regiões, acabou por discutir o fato já consumado do novo modelo. O modelo dos Territórios Etnoeducacionais não foi debatido e sequer é compreendido pela maioria das comunidades e povos indígenas e, porque não dizer, por muitos executores da política que, em geral, são os estados e municípios.

Judicialização dos procedimentos demarcatórios

Nesta avaliação da conjuntura indigenista, não podemos deixar de observar também as crescentes demandas judiciais contra procedimentos de demarcações de terras, em curso ou até em fase de julgamento definitivo. Raras têm sido as decisões que acolhem de maneira favorável os direitos e interesses indígenas. Normalmente as decisões têm um caráter liminar que suspendem os procedimentos demarcatórios até que o mérito seja decidido pelas instâncias superiores, no caso STJ ou STF. Em função destas manobras jurídicas, os processos se arrastam por décadas sem que haja uma solução para o litígio imposto.

Neste sentido, merecem destaque duas ações de grande repercussão e que chegaram ao STF: o caso do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, do sul da Bahia, ação que tramita há quase 30 anos e que, embora com voto favorável do relator da ação ao povo indígena, ainda não foi julgada; e Raposa Serra do Sol, que teve um desfecho importante, em função de o julgamento ter sido pela manutenção da demarcação em área contínua, mas complexo pelo estabelecimento de condicionantes que afetam todas as demarcações de terras em curso e aquelas que acontecerão no futuro.

Direitos indígenas ameaçados

As opções políticas do governo do presidente Lula o conduziram para a governabilidade a qualquer custo. Para isso, o governo estabeleceu alianças políticas com segmentos retrógrados e possibilitou que certas áreas estratégicas fossem incluídas no rol dos recursos a serem explorados, a exemplo das áreas ambientais, minerais e de energia hidráulica. Além disso, potencializou, seguindo o modelo de governos anteriores, a concentração de renda, de poder e de terras nas mãos de certos privilegiados históricos – os latifundiários, banqueiros, usineiros, empreiteiras, empresários do agronegócio e de energia.

Os povos indígenas, no atual governo, diferentemente de anteriores, se fizeram mais presentes nos espaços públicos, reivindicando e exigindo que as autoridades cumprissem com suas responsabilidades. Nas últimas décadas o movimento indígena, de modo geral, tornou-se protagonista.

No entanto, apesar de uma visibilidade maior e da criação de certos espaços de participação, algumas artimanhas utilizadas por parte daqueles que governam engessaram as ações indígenas em torno de discursos, pedidos de paciência, mais abertura ao diálogo e promessas a serem cumpridas. Com isso, as lutas indígenas que mostraram maior relevância foram aquelas que se organizaram em âmbito local ou regional. As de caráter nacional foram como que dissipadas e muitas delas esvaziadas pela relação que se estabeleceu com setores do governo federal que eram, até muito recentemente, opositores aos governos anteriores e inclusive militantes da causa indígena.

Já os setores anti-indígenas estão cada vez mais articulados. No parlamento brasileiro, diversos projetos de lei tentam impedir que terras indígenas sejam demarcadas. Exemplo disso é a proposta de emenda constitucional que determina que as demarcações de terras sejam autorizadas pelo Congresso Nacional. Sem contar as dezenas de outros Projetos de Lei apresentados por parlamentares para, de algum modo, restringir os direitos indígenas.

Mobilizações à vista

As perspectivas, embora o novo governo esteja em período de montagem, não parecem ser animadoras. Os discursos proferidos pela presidente da República eleita apontam para a continuidade da política desenvolvimentista, toda voltada para os megainvestimentos em obras e na exploração dos recursos naturais. A composição dos ministérios do novo governo evidencia o lado para o qual o pêndulo das ações governamentais penderá. E um dos exemplos foi a recondução de Edson Lobão para o Ministério das Minas e Energia, ministro responsável pela megalomaníaca obra de Belo Monte.

Nos próximos anos haverá certamente muitos embates e debates em torno dos direitos indígenas. Os povos, suas organizações e os aliados da causa terão que se distanciar, num primeiro momento, de certos “vínculos” a pessoas e partidos e buscar construir um cronograma de prioridades para a política indigenista. E também dedicar atenção especial para as centenas de comunidades indígenas espalhadas pelo país que sofrem cotidianamente com a ausência de políticas públicas, apostando fortemente na organização do movimento indígena em âmbito local e regional.

Há grandes desafios a serem enfrentados pelos povos e suas organizações: entre eles, o de apresentar as demandas, mobilizar-se em torno delas para que efetivamente sejam acolhidas e transformadas em políticas públicas, assegurando sua participação em todas as etapas; e o de pressionar o poder público para que as terras sejam efetivamente demarcadas, protegidas, estando a posse e usufruto assegurados aos povos e comunidades.

Sem que isso aconteça, não é possível vislumbrar o efetivo combate às violências, ao descaso, à omissão e à dependência de “políticas” paliativas e compensatórias. Sem isso, na hora de discutir políticas públicas os povos indígenas serão tratados como "entraves" ao propagado "desenvolvimento".

Um comentário:

  1. proponho a leitura dum conjunto de artigos publicados no jornal le monde diplomatique, e organizados pelo instituto paulo freire em um livrinho, sob o título: alternativas ao aquecimento global

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