quarta-feira, 22 de julho de 2015

Carta do Colóquio contra a LO de BELO MONTE

 
Ex.mas Sras.
 
Dilma Rousseff
Presidente da República do Brasil
 
Izabella Teixeira
Ministra do Meio Ambiente
 
Marilene de Oliveira Ramos Murias dos Santos
Presidente do IBAMA
 
Distinguidas senhoras,
 
Esta Carta-Documento Pública escrita por pesquisadores, estudantes, representantes de organizações e movimentos sociais, originária do Colóquio Concessão à Violência: A licença de Operação de Belo Monte é mais uma busca obstinada de diálogo com o governo e a tecnocracia estatal no Brasil.
Nesse evento analisamos as decisões que implicam a destruição da vida social e cultural de Povos e de milhares de pessoas que dependem de territórios e de seus recursos na região do rio Xingu e cujas formas de vida são transformadas irreparavelmente com a construção do Complexo Hidrelétrico Belo Monte.
Aqui reafirmamos o exposto em inúmeros documentos, livros, artigos, relatórios, dossiês, entrevistas, encontros, ciclos de conferências, reuniões, ações civis e em novos estudos sociotécnicos com observações pormenorizadas sobre o agravamento da situação social dos Povos indígenas, pescadores, agricultores, trabalhadores e moradores da cidade e com pesquisas detalhadas sobre o avanço cego da destruição de ambientes.
De forma pontual, esses estudos se remetem às inconsistências e incompletude do EIA/RIMA, apontadas pelo Painel de Especialistas - Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte (2009). Precisamente nele se sumarizaram as recomendações de execução de estudos complementares sobre os efeitos sociais e ambientais dessa obra de intervenção. As inconsistências observadas desde os primeiros anúncios e a ação atenta do Ministério Público Federal - Pará fizeram o IBAMA introduzir Condicionantes desde a outorga da Licença Prévia (2010).
Parte dessas Condicionantes não foi cumprida - foi empurrada para a Licença de Instalação. Agora, os empreendedores solicitam a Licença de Operação sem ter atendido a elas, produzindo com esse posicionamento uma sobrecarga de Condicionantes, que ficam para um tempo sem tempo, por ausência de indicativo de agenda de cumprimento. Desta forma, abstendo-se de seu tratamento no tempo adequado, arrastam-se consequências dessa negligência e desleixo institucional, técnico e político.
Dezenas de estudos técnicos sobre o Complexo Belo Monte, realizados pelos praticantes de uma ciência em interlocução com a sociedade, em universidades e instituições públicas, têm diligentemente perscrutado as formas de violência política que se observam pela exclusão de Povos, Comunidades e grupos de decisões que lhes concernem e ainda pela imposição de uma política de resignação. Violência jurídica pela deturpação das normas, códigos e convenções da qual o Licenciamento Ambiental é o exemplo mais burlesco. Violência simbólica pelo não reconhecimento de outros projetos sociais de existência e do direito de expô-los, defendê-los e realizá-los.
A violência está instalada e se exacerba, fazendo dos grupos que sofrem seus efeitos os sem tempo presente e futuro. Essa violência confere-se pelo descumprimento da Constituição Federal e de Convenções Internacionais - Convenção 169 da OIT/1989; Principio 10 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento/1992; Protocolo de Quioto/2005.
O governo ignora, constrange e descumpre a Constituição Federal, especialmente no que diz respeito às Terras Indígenas, aos Povos Tradicionais e aos direitos consagrados: direito à moradia; direito à saúde, direito ao trabalho; direito dos migrantes; direito à educação; direito de acesso à justiça; direito ao ambiente. O governo obedece a uma única estratégia política, a de anular qualquer consulta para os atingidos, fechando-lhes o espaço democrático necessário para uma discussão pública permanente e esclarecida que exige uma obra desse porte e efeitos ambientais. De forma ardilosa utiliza-se do viés jurídico do instituto da suspensão de segurança, criado pelo art. 4º da Lei 4.348/64 e busca produzir meios de convencimento a todo custo para reduzir as ações políticas dos agentes sociais, e ainda passa a criminalizá-los, intimidá-los e constrangê-los fisicamente pela interdição de espaços e vias de circulação.
Quais têm sido as estratégias do Consórcio Norte Energia, da burocracia de Estado (Ministério do Meio Ambiente, IBAMA, Tribunais de Justiça), dos grupos econômicos e políticos conluiados nesta obra (empresas, financiadores)?
O consórcio Norte Energia nega as questões sociais que permanecem inalteradas. Entre as mais preocupantes estão os chamados reassentamentos dos moradores de bairros, vilas, ilhas e povoados, pois neles não são respeitadas as condições mínimas de reprodução das formas de vida social e trabalho de pescadores e agricultores, indígenas e não indígenas. Nega outros trabalhos e saberes que desaparecem seja pela falta de matéria-prima, seja pela falta de consumidores, como os oleiros, os areeiros, os carroceiros, os pilotos de barcos e voadeiras.
A burocracia de Estado, políticos e técnicos estão envolvidos na produção de um discurso de legitimação que tem como principal missão reduzir as incertezas técnicas, minimizar os custos financeiros e produzir delírios ufanistas. Uma estratégia é manobrar sobre as variações dos grandes números. A exemplo do custo e “saúde financeira” do empreendimento.
O valor do investimento inicial da obra em 2010 que era de 19 bilhões de reais, foi revisado em 2012 e elevado para R$ 28,9 bilhões. Em 2014, sobe novamente para R$ 32 bilhões de reais. Essas variações mostram o comprometimento da saúde financeira do empreendimento. Outra variação é relativa ao preço do MWh, que foi leiloado em 2010 por R$ 79,00. No entanto, o BNDES, ao financiar 80% do custo total da obra, exigiu que a Eletrobrás garantisse a compra de 20% da energia a ser produzida (a preços do “mercado livre” de energia, constituído pelas grandes empresas consumidoras) no valor de R$ 130/MWh, cerca de 70% superior à tarifa definida no leilão. Com isto, ocorre uma transferência do prejuízo para os consumidores comuns.
Outra estratégia para produzir essa legitimação está em driblar as informações sobre a "área diretamente afetada" e sua relação com a potência instalada, cuja finalidade é criar artificialmente um índice ambiental favorável. Para isso considera apenas a área alagada e exclui as áreas submetidas à restrição hídrica na Volta Grande do Xingu, igualmente afetadas, chamadas de sequeiro. Exclui também a jusante da barragem do sítio Belo Monte. Os pesquisadores reunidos no Colóquio questionam o índice apresentado pelas empresas e agências do setor elétrico, apontam a sua insuficiência e questionam o IBAMA/Dilic. O ineditismo desta obra-intervenção não exigiria um indicador ambiental rigoroso e efetivo quanto à consequência ambiental real e não meramente administrativo?
Adicionalmente, observa-se que as instituições responsáveis pelo licenciamento ambiental desviam a atenção de questões cruciais da dinâmica e equilíbrio da bacia do rio Xingu e sua vinculação com a complexa bacia do rio Amazonas. Já no EIA/RIMA do Complexo Belo Monte é desconsiderada uma categoria importante - a bacia hidrográfica. Em seu lugar multiplica-se o discurso das Áreas - AII, AID, ADA, AIA - e sua utilização. É impossível dimensionar com as pesquisas realizadas os efeitos do Complexo Hidrelétrico sobre a Bacia do Xingu e do Amazonas, que está em sua foz.
O modo como se processa hoje o licenciamento ambiental permite até que haja aninhamentos e acomodações de outros projetos, com licenciamento ambiental estadual, como é o caso da exploração de ouro pela Belo Sun, que realizará a lavra na Volta Grande. Trata-se de efeitos cumulativos imprevisíveis para os Povos, Comunidades e grupos sociais e para os ecossistemas.
Nesse contexto, empurram-se condicionantes, misturam-se licenciamentos e os agentes - burocracia de Estado, políticos e técnicos - acompanham o cronograma de obras com flexibilidade, permissividade e desapreço ao cronograma de cumprimento das Condicionantes.
A intervenção nos ambientes da região do rio Xingu continua célere sem mensurar os efeitos sobre cada ecossistema e cada recurso. O Complexo Belo Monte está inserido em uma região de importância biológica extremamente alta: Volta Grande do Xingu, rio Bacajá, Cavernas na região da Volta Grande (parte da Província espeleológica Altamira-Itaituba), Tabuleiro do Embaubal, região da Terra do Meio, bem como Terras Indígenas. O EIA produzido sobre Belo Monte foi apresentado sem a completude de amostragens e análises e não concluiu sobre a dimensão dos impactos sobre diversos representantes da fauna aquática, nem tampouco mensurou adequadamente os impactos sobre a pesca e diversas formas de uso destes recursos naturais pelos Povos indígenas e tradicionais.
A Licença de Instalação foi concedida sem que estudos sobre ecossistemas aquáticos no rio Bacajá e projeto de investigação taxonômica da ictiofauna tivessem sido concluídos. No monitoramento, desconsideram-se as mudanças abruptas sobre a ictiofauna no rio Xingu que possui centros de diversificação de espécies, de biologia e hidrologia únicas. O sistema de cavernas da região também não tem estudos com metodologia adequada de amostragens que dê suporte a sua preservação.
Terras Indígenas continuam intrusadas e abertas ao saque e à destruição, como o estão as Terras Indígenas Cachoeira Seca; Terrã Wãgã (Arara da Volta Grande) e Apyterewa, constituindo-se uma flagrante condicionante não cumprida. Os pescadores e suas estratégias tradicionais de pesca estão totalmente ameaçados. Os impactos que são considerados na fase de construção não têm sido devidamente avaliados, como a turbidez da água, a supressão e desmatamento das ilhas, as explosões cotidianas de rochas, a supressão de praias e o deslocamento de bancos de areias. Para o período de operação, efeitos sobre a perda de biodiversidade, sobre o empobrecimento genético de populações, bem como estimativas sobre determinadas espécies, que já se reconhecem fortemente ameaçadas como os quelônios e peixes importantes na economia e na alimentação locais, não estão sendo dimensionados. Os inventários bióticos previstos no Termo de Referência e contidos no EIA foram restritos a alguns grupos da fauna aquática e terrestre e sequer há parâmetros adequados para estimar a perda.
Estas ações marcam a destruição de territórios e ecossistemas e suas respectivas histórias de vida forjadas ao longo do tempo histórico e geológico. Apesar de todos os impactos previstos e não previstos no EIA, ainda assim, as licenças foram concedidas, evidenciando uma valoração menor aos ecossistemas perdidos ou abruptamente alterados - uma escolha pela perda. Perda de inúmeras espécies da fauna terrestre, aquática e subterrânea e microbiota associada na bacia do Rio Xingu, o que nos conduz a afirmar que está se escolhendo um ecocídio.
Nesse processo de transformação, verificam-se ainda fatos que evidenciam situações de ilegalidade e de convulsionamento social, decorrentes da instalação do projeto, como os surtos de exploração ilegal de madeira em Terras Indígenas; diminuição e perda da produção agrícola; redução do estoque de peixes; aumento de preços da cesta básica e moradia; superexploração do trabalho e outras ilegalidades nos canteiros de obras; aumento de acidentes de trabalho; elevação das taxas de homicídio; de violência doméstica; de prostituição infantil; precarização do atendimento à saúde; aumento de episódios de doenças coronarianas e mentais e elevação da taxa de mortalidade.
A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, contra todos os alertas dados ao longo de anos, contraria princípios dos direitos humanos, e tem levado ao limite a vida de Povos índigenas, ribeirinhos, pescadores, agricultores e trabalhadores no Xingu. E contra o apelo de suas vozes, de suas manifestações junto ao poder público, do embasamento dos processos jurídicos impetrados pelos Ministérios Públicos, Federal e Estadual, está ocorrendo a morte, com alto grau de perversidade, de coletividades e culturas.
As dimensões dessa destruição e constrangimento físico e psicológico dos Povos, Comunidades e grupos expulsos e compulsoriamente deslocados, que comprometem a transmissão de saberes entre gerações, nos levam, - a nós, participantes do Colóquio Concessão à Violência: A licença de Operação de Belo Monte - a caracterizar este processo como evento de genocídio. Promovido em nome da geração de energia, semelhante às outras hidrelétricas já construídas e planejadas, em consonância com os interesses barrageiros das indústrias de construção civil, de equipamentos elétricos e das empresas de mineração que continuam a impor o uso das bacias hidrográficas da Amazônia, segundo seu próprio arbítrio. Esses interesses estão dispostos a instalar 153 hidrelétricas na Pan-Amazônia, 40 das quais na Amazônia brasileira.
O Brasil, como um todo, faz-se cúmplice contemporâneo do genocídio do etnocídio e do ecocídio que estão a ocorrer na Amazônia. Aos Povos do Xingu, o direito à vida, no sentido profundo do que isso significa. Essa é a única possibilidade, e portanto, inegociável, da dignidade da sociedade brasileira, de honrar os compromissos escritos na sua história e recompor a condição de cidadania que o Estado tem o dever de preservar.
O autoritarismo que domina o Brasil apresenta uma de suas formas mais violentas na política energética e denunciamos eventos simultâneos de ecocídio, etnocídio e genocídio que se concretizarão com a concessão da Licencia de Operação de Belo Monte.
Apresentamos e levamos adiante esta denúncia com a convicção de que esta combinação de genocídio, etnocídio e ecocídio se insere no conflito global em relação ao meio ambiente e convidamos todos os pesquisadores e estudantes, bem como todas as pessoas que não compactuam com a violência, a manifestar seu repúdio a este tipo de projeto e à licença de operação do complexo Belo Monte, posicionando-se a favor dos Povos da Amazônia, suas Comunidades, culturas, territórios e ecossistemas.

Belém, 30 de junho de 2015.